sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Ainda sentado no banco do metro o Sr. V, pálido como uma flor na jarra de um casamento, puxa a gola do casaco e prepara-se para sair na próxima estação. Já em pé recupera o folego e observa repentinamente a escuridão que vem do lado de fora da janela. Está tranquilo com a sua solidão. Com o desacelerar da viagem o Sr V aproxima-se da porta de saída. É fim de tarde, o dilema da demora e da impaciência assalta o comum dos mortais. A carruagem parou e a torrente de desconhecidos mistura-se e condensa-se, tudo próximo e distante, a marcar o ritmo cardíaco da resignação geral. Tomando o seu lugar o Sr. V pica o bilhete na máquina, acha confuso porque é que o tempo afinal se mede sempre da mesma maneira. Em ziguezague ultrapassa o passo lento de três caloiros com ar de informática, acerta o chapéu e num curto rodopio de esquina lança um olhar fugaz sobre o relógio da estação.
– “ Ora boa tarde Sr. Doutor! Então como tem passado?”
O Sr. V rodopiou novamente para o lado oposto e recuou um passo em esforço.
- “ Desculpe, mas eu não…”
- “Ó Sr Doutor, anda sempre muito acelerado. Ora! Olhe que isso não lhe faz nada bem à saúde! Não se lembra do que lhe disse da última vez?”.
Dentro de uns sapatos velhos, umas calças leves e claras, camisa com riscas e mochila da tropa o sujeito aparentemente desconhecido, com sacos azuis de plástico seguros por uma mão, quis palrar de sorriso aberto e vendo quem passava com sentimentos vagos, fingiu ser um viajante ou talvez um comerciante local. Se calhar era adivinhador ou apenas um despretensioso passageiro marginal onde o tempo passou depressa no relógio e devagar no coração. O Sr V não resmungou e descontraidamente manteve o olhar sobre o sujeito. Nem quis se esforçar para verificar a memória. “O que lhe disse da última vez? “Mas quem era este tipo?”. Como a combinação o intrigou achou até que devia escrever sobre esta abordagem.
-“Então o que foi que me disse dessa ultima vez?” – Retorquiu o Sr. V. pensando que agora, depois de sair da estação do metro, seria mais oportuno, virando no primeiro quarteirão da rua onde o sol ainda espreita, já que por ali normalmente ninguém quer falar. O homem mantinha a descontracção inicial, de sorriso contido mas inocente, sem alaridos, nada de velocidades. Mas aqueles sacos faziam um barulhinho capaz de enlouquecer os gatos e mesmo algumas pessoas.
- “ Mais distração Sr Doutor! Olhe a rotina!...Não se deixe vencer!...Ò Sr. Doutor, sabe? Tenho algo aqui para si que o vai animar! Um relógio bem bonito e afinado que marcará de forma exata o seu tempo. Assim não terá problemas com as horas. Chegará pontual aos seus compromissos. Para si, preço simbólico, apenas 50 euros!”. Enquanto tirava-o daquele saco de plástico fininho o Sr V. disse-lhe que não gostava de prendas e que apenas quis retribuir a expetativa que lhe lançou. A lucidez do sujeito irradiava a sua vontade de falar. Provavelmente andaria a alombar com tudo contra o qual lutou quando era novo. E agora queria vender-lhe um relógio?! Mas como os olhos abriam-se e fechavam-se muitas vezes o Sr. V achou que não deveria desvendar um pouco mais a curiosidade ou uma possível vergonha de fraternidade fatal, deste gesto de rotina que se transforma, entre penas e choradinhos, numa ínfima ação do carater humano. Bastava isto para lhe agradar: os tipos que falam de mais e gostavam de pensar menos.
- Srº Doutor, 20 euro! Vá lá, então?! - insistiu ainda.
- Desculpe mas estou atrasado. Não quero nenhum relógio.
O Sr. V voltou a rodopiar, coçou a barba e fintou o vendedor pela última vez. Ainda lhe faltavam uns bons minutos a pé para chegar ao seu destino, tirar a gabardina, descalçar os sapatos, ligar a luz, sentar-se na cadeira da sala e começar a escrever a cronica do dia que tinha vivido para contar. Era tudo o que lhe estava reservado para o regresso ao fim da tarde. Só ele e mais as rugas. Um pouco mais velho, Só isso e mais a voz que se calou, cansada de esperar a resposta aos pedidos justos de mudança.
- Então Adeus. Ate há próxima!
- Sim… Adeus. Ah! Desculpe mas como é que o senhor se chama?
- Não se esqueça. Eu sou o Zé. Mais conhecido por Zé dos Tapetes! Vai ver que na próxima irá comprar-me o relógio!

E o que fica não são os episódios mas as palavras que dizem os episodios. É como usar chapéu sem o perder. Embora o mundo inteiro continue a vaguear em farrapos nas ruas do capital. E o Sr V sorriu para dentro e partiu caminhando pelo passeio a subir a calçada.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Forças alheias, ou talvez apenas as dores da noite, a crescer dentro da cabeça, fizeram com que este corpo, ficasse hoje a tomar conta da casa. O Natal terminou e a imunidade sentimental seguiu caminho com o seu rasto de celebração de uma velha memória; houve declarações de amor e de amizade, num fraternal silencio de corpo e meia dúzia de palavras vãs. Acreditar nelas como se servissem para alguma coisa.

A filha ainda dorme no seu consolo de coração de infância. Na sala, colado ao vidro que separa a inutilidade lá de fora da minha casmurrice de lá de dentro, traduz-se a minha resiliência de ainda gostar do mundo. Os musculos já não são tão vaidosos e as emoções, cada vez mais pontuais e pragmáticas; são osmose de conteúdos, levadas por sacos do supermercado. Já lá vai o segundo café e o seu coexistente cigarro. Aproximo da janela. "Tanta falta faz parar a rotina". Rasgar contratos caducos e voltar a moldar o barro humano.

Os carros descem a rua; a chuva permanece, no céu e na terra. Serve quase de consolo. Como lera nas crónicas do L. Antunes “umas coisas valem por outras e temos o consolo da chuva”. São poucas as coisas que continuam o seu percurso lento e duradouro, intemporal. Maioria delas são coisas que pertencem à natureza e à categoria dos fenómenos. 

Não ligo a eletrodomésticos. A sala continua a sua paciente crónica do dia, hoje acompanhada por mim. Aproveito para rever os jornais de meses atrás. Até lembra quase um quadro de natureza morta. Estranheza e surpresa. No ciclo rotineiro das horas - esta - não seria para estar aqui.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Fugiu, 
debaixo de fogo, enraivecido. 

O barulho infernal, 
das balas, alimentavam fúrias. 

Disparou também, com as mãos suadas. 

O corpo, 
perseguido pelo medo, franqueava.

Está perdido, desesperadamente só.

Sentia-se no labirinto,  
num sacrifício , como o Minotauro.

Os combates continuam.

Um ileso rosto familiar, 
na retaguarda, aproximou-se.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

E o Homem ocupou o lugar de Deus
( Assim se convenceu )

Calou-Se e começou a ter um sonho fantástico.
Prosseguiu.


quarta-feira, 13 de junho de 2012

Dr. Osório - síntese


Na casualidade aparente do gesto gentil o Dr. Osório não se quis demorar com justificações nem quis sequer se despedir de Teresa. Já em casa, depois de desistir da pesquisa do mediático e maciço caso judicial da família Delgado, enviou uma pequena nota para o correio electrónico que dizia: “Ficámos interditos Teresa? Mas o amor de certo modo é uma repetição contínua. Por momentos achei que atingimos o secreto mistério que há nas coisas. Brincava contigo e com o desejo que temos, porque somos, fundamentalmente amigos e é assim que os amigos fazem: contam segredos, partilham impossíveis e tocam-se pela rama. Atómica esta relação! Mas não contesto a tua decisão. Quando voltares a Lisboa vê lá se avisas para irmos ao Ritz, o teu club favorito reabriu.

sábado, 2 de junho de 2012

Dr Osório - antítese


A luz noturna de Sábado chega indiferente e cerra a calçada silenciosa da rua, o Dr. Osório não sabe se está vigilante ou se aguarda pelo passo seguinte a tomar. Após caminhadas de circunstância ao quarteirão, na inquietude de matar o tempo, regressa pela rua de baixo ladeando o jardim dos cisnes. Forçado pelo cansaço, evita entrar no nº 18 do prédio do cimo da Avenida. Senta-se junto do alpendre das escadas meio atordoado pelo calor. Retira do bolso do casaco um papel, dobrado em quatro, já amachucado pelas inúmeras vezes que o guardara. Nele continha um nome e um adeus. A frase que continha, lia-a para dentro de si: “O amor cega a inteligência e é o único alívio do meu cérebro. Mas vou sair. Vou voltar para Barcelona!”. 
A formação em filologia foi-lhe muito eficaz no que respeita à escolha virtuosa das palavras. Mas também lhe coube o favorável manuseamento vão de não se deixar enganar pelo signo delas. 
Como num prolongamento de qualquer situação indesejada os lábios cerravam-se à força e o riso ironicamente a querer soltar-se dos fundilhos da garganta. “Porra Teresa, que desilusão maldita!”. Será este o ultimo dia de Verão?

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Dr Osório - tese

No entardecer do dia o Dr. Osório persegue a calçada de mármore lisa e fria, largando o resto do cigarro numa poça de água. Revolve a língua e esquecendo as horas, a felicidade ou vazio que trás consigo, evita assim sem dar por isso regressar a casa. Com os olhos dececionados em tom de ressaca espreita para uma varanda do prédio que se seguia e já com os pés magoados dentro dos sapatos, recordou como o bairro da sua infância estava esquecido. As belas casas de traço anos 70 perderam a convivialidade da cidade, estão moribundas e desabitadas, sem o brilho inicial, sem o espírito do lugar.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Expressão Oral

Durante a viagem de comboio, sem distracções, dentro do seu pensamento lia-se:
" Vai haver porrada da grossa !".

citação

"O verso irregular nasce no desequilíbrio dos sentimentos"
Nuno Judice 

(in)temporal II - a construção da personagem


Este homem que entra e sai da sombra do sabiamente gerido, trabalhando no escritório, cuida da sua imagem, publicitada ou não, contribui dia após dia para que seja cometido um crime diametralmente oposto aquilo que sente. Até porque a ordem do dia não tem contestação nem zurra ofensas.
Lembra-se ao entrar no elevador que queria dedicar-se ao estudo do antigo, dos monumentos e dos vestígios dispersos pela ideia deixada pelos documentários em formato VHS da colecção do avô. Uma pequena liberdade que ficara por aperfeiçoar. Mas se fosse médico seria talvez especialista de doenças de coração. Aparte divagações ou sonhos por cumprir, a porta do elevador abre-se e já no quinto andar onde fica seu gabinete, Aguinaldo evoca a sua função de organizador de tarefas e de pessoas. Ajeita a gravata, afina a visão através do retocar dos óculos. O compromisso na hora marcada. Mas acha que há algo de profundamente errado no modo como pensa.